sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
quinta-feira, 18 de março de 2010
VELHO VENTO
Velho vento vagabundo!
No teu rosnar sonolento
Leva ao longe este lamento,
Além do escárnio do mundo.
*
Tu que erras dos campanários
Nas grandes torres tristonhas
E és o fantasma que sonhas
Pelos bosques solitários.
*
Tu que vens lá de tão longe
Com o teu bordão das jornadas
Rezando pelas estradas
Sombrias rezas de monge.
*
Tu que soltas pesadelos
Nos campos e nas florestas
E fazes, por noites mestas,
Arrepiar os cabelos.
*
Tu que contas velhas lendas
Nas harpas da tempestade,
Viajas na Imensidade,
Caminhas todas as sendas.
*
Tu que sabes mil segredos,
Mistérios negros, atrozes
E formas as dúbias vozes
Dos soturnos arvoredos.
*
Que tornas o mar sanhudo,
Implacável, formidando,
As brutas trompas soprando
Sob um céu trevoso e mudo.
*
Que penetras velhas portas,
Atravessando por frinchas...
E sopras, zargunchas, guinchas
Nas ermas aldeias mortas.
*
Que ao luar, pelos engenhos,
Nos miseráveis casebres
Espalhas frios e febres
Com teus aspectos ferrenhos.
*
Que soluças nos zimbórios
Os teus felinos queixumes,
Uivando nos altos cumes
Dos montes verdes e flóreos.
*
Que te desprendes no espaço
Perdido no estranho rumo
Por entre visões de fumo,
Das estrelas no regaço.
*
Que de Réquiens e surdinas
E de hieróglifos secretos
Enches os lagos quietos
Revestidos de neblinas.
*
Que ruges, brames, trovejas
Ó velho vândalo amargo,
No sonâmbulo letargo
De um mocho rondando igrejas.
*
Que falas também baixinho
Lá da origem do mistério,
Trazendo o augúrio sidéreo
E certa voz de carinho...
*
Que nas ruas mais escusa,
Por tardes de nuvens feias,
Como um ébrio cambaleias
Rosnando pragas confusas.
*
Que és o boêmio maldito,
O renegado boêmio,
Em tudo o turvo irmão gêmeo
Do sonhador Infinito.
*
Que és como louco das praças
Nos seus gritos delirantes
Clamando a pulmões possantes
Todo o Inferno das desgraças.
*
Que lembras dragões convulsos,
Bufantes, aéreos, soltos,
Noctambulando revoltos
Mordendo as caudas e os pulsos.
*
Ó velho vento saudoso,
Velho vento compassivo,
Ó ser vulcânico e vivo,
Taciturno e tormentoso!
*
Alma de ânsias e de brados,
Consolador companheiro
Sinistro deus forasteiro
D'espaços ilimitados!
*
Tu que andas, além, perdido,
Tateando na esfera imensa
Como um cego de nascença
Nos desertos esquecido...
*
Que gozas toda a paragem,
Toda a região mais diversa,
Levando sempre dispersa
A tua queixa selvagem.
*
Que no trágico abandono,
No tédio das grandes horas
Desoladamente choras,
Sem fadigas e sem sono.
*
Que lembras nos teus clamores,
Nas fúrias negras, dantescas,
Torturas medievalescas
Dos ímpios inquisidores.
*
Que és sempre a ronda das casas,
A gemente sentinela
Que tudo desgrenha e gela
Com o torvo rumor das asas.
*
Que pareces hordas e hordas
De hirsutos, intonsos bardos
Vibrando cânticos tardos
Por liras de cem mil cordas.
*
Ó vento languido e vago,
Ó fantasista das brumas,
Sopro equóreo das espumas,
Ó dá-me o teu grande afago!
*
Que a tua sombra me envolva
Que o teu vulto me console
E o meu Sentimento role
E nos astros se dissolva...
*
Que eu me liberte das ânsias
De ansiedades me liberte,
Pairando no espasmo inerte
Das mais longínquas distâncias.
*
Eu quero perder-me a fundo
No teu segredo nevoento,
Ó velho e velado vento,
Velho vento vagabundo!
(Cruz e Sousa)
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
A HISTÓRIA DE ANTONIO PESCADOR
Numa praia de águas calmas, aldeia de pescadores,
Ali nasceu Antonio, em jardim de muitas flores,
Aguas de muitos peixes, a vida de pobres trabalhadores.
Lugar de tantos encantos, mundo de muitas dores.
A mãe, menina fraquinha, não viu filhinho crescer,
Logo deixou este mundo, cansada de tanto sofrer.
O pai assim tão sozinho, achou a criança não merecer;
“Iemanjá proteja meu filho, o menino precisa viver.”
Clemência, ama de leite, foi da criança cuidar,
Que o pai desconsolado queria o mundo deixar.
A ama, mãe amorosa, pediu-lhe quase a chorar:
“Moço, vá prá bem longe, se mude deste lugar.”
O menino Toninho, cresceu bem devagarinho;
Custou a caminhar, a trocar os primeiros passinhos.
A criança sorria e sonhava em seus breves soninhos;
Sonhava que cantava, e tocava um pequeno sininho.
Sua saga tão bonita no candomblé se revelou:
Enfrentar grandes desafios, isso logo êle aceitou,
Pois Iemamjá, sua madrinha tão bem o encorajou;
Encontrar o pai tão distante, bem, aí Antonio duvidou.
No pobre vilarejo o pescador andava desanimado:
Pras redes dos grandes pesqueiros ia todo o pescado;
Até o sonho da juventude teria que ser adiado.
Como resistir a tentação em meio a tanto pecado?
Certa noite Antonio teve um sonho bem diferente:
Sonhou com o pai numa cama, gemendo muito doente:
“Antonio, meu filho...” chamava êle de modo comovente.
Chegara a hora de partir, encontrar aquele pai ausente.
Difícil foi se despedir de tanta gente amada:
Os companheiros de trabalho, Mariá, a namorada.
Mãe Clemência, velhinha, não enxergava mais nada.
Deu vontade de desistir de tão longa caminhada.
Mas de novo os orixás vieram em sua ajuda:
Ogum logo respondeu ao seu grito de acuda:
“Siga seu caminho, sem pensar em coisa miúda;
Do mundo e suas lidas é Oxalá quem cuida.”
Passagem cara, estrada longa, comida ruim;
A poeira cobrindo tudo, nunca viu nada assim.
Sonhando acordado, Mariá sorria e lhe dizia sim;
Um frio danado, roendo seu corpo já perto do fim.
Fim de viagem. Terra fria, terra estrangeira,
Gente tão diferente, gente mais ligeira.
E se não acostumar? Não é que não queira...
Gente mais sem jeito, lugar mais sem beira...
Antonio não atinava no que fazer primeiro.
Melhor voltar já. Mas... ‘‘quéde’’ todo seu dinheiro?
No bolso só um trocado e a foto do pai tão faceiro.
Na sacola só muda de roupa; melhor mais andar ligeiro.
Prá ajudar sempre aparece um bom coração:
“Servente de pedreiro, alí na construção;
Vá lá agora, moço, nem precisa condução”.
Fale com o mestre, a obra tá com precisão.”
A saudade da Bahia, a fome e o frio cortante:
Três monstros prá derrubar naquela cidade gigante.
A amizade dos companheiros, as rodas cantantes,
A vontade de encontrar o pai, incentivos constantes.
Os perigos da cidade, com todos Antonio aprendeu:
Enfrentou preconceito, à exploração não cedeu.
Sentiu-se excluido, sua fé foi o que lhe valeu.
Muita força de vontade, pediu e Deus lhe deu.
Da terra natal êle não se esquecia um instante:
A imagem da morena Mariá, lá longe, tão distante...
Às vezes a via tão perto, os olhos sempre brilhantes;
Amor de verdade, sentimento mais importante.
Certo dia, do alto do andaime, Antonio jurava que viu:
Mariá parada lá em baixo, como no dia em que partiu.
Esperava por êle? Passo em falso e o moço do andaime caiu.
Só por Ogum, seu padrinho, o pobre não sucumbiu.
Iemanjá, a boa madrinha, depressa seu pai foi buscar:
Pedro passava distraído, sem nada para pensar,
Quando o rapaz quase morto a seus pés foi parar.
Pedro cuidou bem do filho sem de nada desconfiar.
(Coincidência demais? acaso? Nada é impossível.
Quem sabe das coisas, dos desígnios do invisível?
Do destino das pessoas, do feliz ao mais terrível?
Prá não acreditar, me perdoe, precisa ser insensível.)
Mas uma grande amizade entre os dois aconteceu:
Um admirava a dedicação de quem nada era seu;
O outro dizia: “ só por valentia o moço não pereceu”.
Os dois muito se pareciam, só cego não percebeu.
Depois de muita conversa, assim apareceu a verdade:
Pai e filho se descobriram em meio a grande felicidade.
Pedro quis ajudar o filho em seus projetos na grande cidade;
Antonio voltou a trabalhar e estudar; se formou em faculdade.
Doutor bem posto na vida, de sua terra não esquecia,
Mas o trabalho, compromissos, de viajar tudo o impedia.
Entretanto a terra natal, sua gente, dele assim não desistia:
Um dia Mariá veio buscá-lo, quem o chamava era a Bahia.
Era hora de voltar: o pequeno vilarejo estava crescendo,
Mas o povo sem recursos, cada vez mais empobrecendo.
Que futuro aquela juventude poderia estar tecendo?
Precisavam de alguém que seus problemas estivesse vendo.
Antônio voltou ao lugar onde um dia tinha nascido.
Não era o mesmo homem que de lá, há anos havia saído:
Muito estudo, perigos, muitos desafios ele havia vencido.
Queria ajudar seu povo, o herói agora estava crescido.
*(Margarida Haucke)
*Margarida morou muitos anos na praia da Armaçã0,
Sul da Ilha de Santa Catarina.
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